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domingo, 5 de janeiro de 2014

Os caminhos de Moreira Campos


Dentro da ficção moderna, o conto tem sofrido radicais transformações. À experiência naturalista e exterior e à estética psicológica, a criação literária tem acrescentado novas dimensões, além do enriquecimento conteudístico provocado pela inserção de temas regionalistas. A narrativa não se prende mais à estrutura fixa de começo, meio e fim, herança dos cânones antigos, de modelos fixos consagrados pela antiguidade clássica, aceitos e seguidos por grande número de escritores, ainda nos dias atuais. Ao relato seguido e objetivo das histórias, opõe-se a técnica da simples evocação sugerida pelo instantâneo fotográfico ou por flagrantes de atmosferas intensamente poéticas. Esses autores reagem contra o descaso formal e estrutural das gerações anteriores em favor da preocupação quase artesanal com o rigor da forma, a arquitetônica estilística, o manejo consciente da expressão escrita.

O escritor Moreira Campos é considerado o mais representativo contista do Grupo CLÃ, movimento considerado grande marco do modernismo nas letras cearenses. O livro de estreia – Vidas Marginais (1949)– caracteriza-se por conter uma notável dose de sentimento humano. Sua literatura envolve uma complexidade muito além do engajamento com problemas políticos e sociais: preocupa-se em criar um conto novo, que não se resuma em uma só leitura, mas que convoque o leitor a um processo de constante recriação da obra. A seriedade o impede de jogar com dados inverossímeis ou de apresentar ideias vazias ou herméticas. Quando tem uma ideia, não se precipita – espera as assimilações, as superposições de imagens, até o momento da criação, quando o conto surge tranquilo, harmonioso, autêntico.

Em O puxador de terço (1969), a linguagem é, sem dúvida, o elemento de maior significação da obra. Apresenta-se límpida, correta, espontânea, em períodos curtos e incisivos. O modo de introduzir os diálogos, o valor do ritmo, a precisão vocabular e até mesmo certa insistência em passagens descritivas, válidas na tipificação das personagens, particularizam o estilo do escritor Moreira Campos. As estórias criam uma unidade estrutural, revelando caráter sintético e agudo poder de observação do autor. Isso não significa dizer que alguns contos de Moreira Campos sejam simples fotografias da realidade exterior – inexiste em sua obra o cunho puramente documentário ou jornalístico.
 
Apuro estilístico

Preocupa-se em valorizar as minúcias, os traços caricaturais de suas personagens. Via de regra, dispensa apresentações – abre o conto pondo a personagem em ação, sempre ficando na posição de observador ou de analista. É bem de seu estilo o verbo na 3ª. pessoa, jamais na 1ª, como o fazia no início de sua carreira literária. Partindo das personagens, o escritor analisa os costumes, os diversos aspectos da sociedade que toma como referência, com singular dose de humor e ironia. Moreira Campos evidencia uma concepção pessimista da natureza. Como bom leitor de Machado de Assis e de Graciliano Ramos assume traços de conteúdo e de estilo bem peculiares aos autores citados: a constância da morte, da loucura, da maldade humana e do erotismo são temas provocados com muita habilidade, fugindo do lugar-comum e do sentimentalismo. Existe uma alternância entre a narração e o diálogo, acentuada pela não interferência do autor, em qualquer sentido.

A linguagem retrata a fala do povo: percebe-se toda a autenticidade das expressões populares o que reforça uma tendência da obra dentro da literatura regionalista. O contista convida o leitor ao processo de recriação, contudo observando certas limitações – o esmero com a forma, o cuidado em medir palavras, em cadenciá-las no ritmo singular do texto evidenciam a concepção clássico-realista do escritor.

“Amoleceu-se mais na parede, deitou os olhos cansados no chão varrido. Depois um pigarro. Uma asa qualquer corou a tristeza da noite, que vinha grossa, enrodilhando-se na mata.” (CLÃ no. 11, pg. 76)
 
Síntese

O contista refazia os contos sempre no sentido de captar a essência de sua trama e de sua urdidura, dispensando o que ele considerava acessório. No conto “Os doze parafusos”, publicado inicialmente no número 25 da Revista CLÃ (1970), uma mulher enlouquecida iria vingar-se da traição do marido, jogando-se do andar de seu apartamento. No estado de loucura em que se encontrava, essa vingança seria o remorso que o marido teria que amargar para o resto de sua vida, vendo-a tragicamente estendida no asfalto: “O velho esclerosado da janela em frente teve um instante de lucidez quando viu o corpo descrever no ar a parábola do salto”. (p. 134)

“O corpo teve estremecimentos, encolheu-se como uma mola. Depois surgiu por baixo da cabeça o filete de sangue, que se espalhou no asfalto. Inúmeras pessoas, banhistas. A moça com a barraca de praia e o vidro de óleo na mão. A senhora que empurrava o carrinho de compras do supermercado. A senhora idosa tivera um ataque histérico e assegurava ter escapado por milagre: ela lhe caíra aos pés. Trouxeram-lhe uma cadeira e ela mal segurava o copo de água”. (p. 135)

No livro Os doze parafusos, publicado anos depois, Moreira Campos tratou de reduzir o conto, retirando a parte descritiva e supérflua dos exemplos citados: se, por um lado, expôs a essência do drama existencial vivido pela mulher em toda sua dimensão, por outro, no entanto, tirou um pouco do encanto da “parábola no ar” traçada pela queda presenciada pelo velhinho que morava no apartamento em frente. Também os múltiplos detalhes que envolvem a contextualização desse trágico acontecimento desapareceram de cena, enxugando mais ainda o pequeno conto, de acordo com a nova estrutura da contística de Moreira Campos.

Vera Moraes é escritora e professora da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Literatura Comparada do Curso de Letras da UFC

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